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O Espanto como Admiração: a paz a partir das religiões afro-brasileiras

“Precisamos nos admirar a partir das nossas diferenças, pois admirar não

ofende. Desprezar é o que ofende! O espanto é admissível, o que não é

admissível é o não acolhimento.” Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva1


O dia 20 de novembro, no Brasil, é dedicado ao Dia Nacional da Consciência Negra, neste ano,  comemorando 50 anos da sua primeira celebração, iniciada pelo grupo Palmares de Porto Alegre em 1971. Seu objetivo é valorizar o herói negro Zumbi, em contraponto ao dia 13 de maio de 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, que libertou os escravizados. No entanto, estes foram abandonados à própria sorte, sem a formulação de políticas públicas que lhes garantisse direitos humanos. 

Neste sentido, no mês de novembro como um todo, têm-se redobrado os esforços em relação à conscientização a respeito do racismo estrutural existente em nossa sociedade. O termo “consciência” é aqui empregado no sentido introduzido por Husserl, fundador da fenomenologia, ou seja, consciência como ação direcionada para algo de que se tem consciência. Este destaque é importante, pois em um contexto social no qual ainda impera o “Mito da Democracia Racial”, é  fundamental direcionar nossos esforços para a importância da conscientização da população brasileira a respeito da pauta antirracista e educação para as relações étnico-raciais.

Sendo assim, estabelecendo um ponto em comum entre a citação do início do texto e a reflexão introdutória acima colocada, podemos dizer que no contexto brasileiro, dentre as questões relacionadas ao debate étnico-racial, as religiões de matriz africana são as que causam espanto para muitos de nós. E também as que mais sofrem resistência e violência, particularmente no contexto escolar. Segundo a profa. Petronilha, o espanto com o diferente é admissível, o que não é admissível é a falta de acolhimento pelo não reconhecimento positivo desse Outro 2. 

Mas de onde vem essa desvalorização e não acolhimento em relação às religiões afro-brasileiras? E o que perdemos com isso, quando pensamos em uma Cultura de Paz?

Como todo tema complexo, as causas e origem da desvalorização e do não reconhecimento das religiões afro-brasileiras como patrimônio cultural imaterial do nosso país não podem ser resumidas em explicações simplistas e reducionistas, pois são multifatoriais e alcançam diferentes dimensões e contextos. Mas é certo que têm como base o racismo estrutural existente em nossa sociedade!

Por outro lado, perdemos, pois essas religiões trazem embutidas em si toda a riqueza e a potência da filosofia e mito africanos trabalhados de forma integrada, reflexões estas bem discutidas pela filósofa nigeriana Sophie Oluwole em seu livro Sócrates e Orúnmilà.  

Orúnmilà pode ser compreendido a partir de três acepções: enquanto Orixá (uma divindade), como uma escola filosófica, ou enquanto Orúnmilà o homem (um ancestral que produziu um trabalho filosófico, o grande sábio de Ifá). 

Na primeira, a partir da tradição Yorubá, Orúnmilà é um Orixá que recebe a incumbência de ser responsável pelo conhecimento, responsável pelos segredos da vida. E não é isso o que a religiosidade, no sentido de compreensão da nossa existência, sentido da vida e transcendência humana, se propõe a discutir? Ou pelo menos deveria, mas cujo sentido muitas vezes se perde, quando aprisionado em uma religião específica que se diz dona de toda verdade, o que infelizmente costuma acontecer em religiões oriundas de tradições ocidentais.

A narrativa de Orúnmilà é só uma pequena amostra do potencial das religiões afro-brasileiras,  enquanto depositárias de um conhecimento ancestral, que nos permite o autoconhecimento trabalhado a partir de uma lógica integradora e que também favorece nossa reconexão com a natureza. Sendo assim, trabalhar a partir dessa perspectiva, particularmente na escola, muito pode contribuir para a promoção de sociedades mais pacíficas e inclusivas, um dos objetivos da Cultura de Paz, a qual precisa incluir não somente intervenções que objetivem a mediação ou condução positiva de conflitos, mas também o desenvolvimento de tolerância, respeito e educação socioemocional,  além de favorecer a consolidação do ODS 16 – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – cujo objetivo principal é promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável.


E por fim, no tocante à busca pela fraternidade universal, traduzida na Umbanda como respeito e amor fraterno ao ser humano, aos animais, assim como à natureza, podemos dizer que as tradições de matriz africana trazem em seu cerne esse espírito e seus adeptos não veem como sonho ou utopia os esforços na intenção de erradicar as profundas divisões que ainda imperam na humanidade.

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1 Trecho extraído da palestra proferida pela profa. dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, em  16/10/2021, para o VI Síntegrada do programa de pós-graduação Análise Ambiental Integrada da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP – campus Diadema). Disponível em: https//www.youtube.com/watch?v=Cvg5o6H6k_8).

2 A palavra “Outro” no sentido introduzido a partir do termo francês “Autre”, cuja origem é do latim alter, de “alteridade”. Diferencia-se, portanto, do termo “outro” que é semelhante ou próximo.

Profa. Dra. Luciana Aparecida Farias é Mestre e Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em Educação Ambiental pelo programa Interunidades (USP). Especialização em Psicologia Transpessoal. É professora associada do Departamento de Ciências Ambientais da UNIFESP e do programa de Pós-graduação em Análise Ambiental Integrada. Trabalha principalmente com temas da Psicologia Ambiental, Educação Ambiental e as Questões Étnico-raciais.

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